
Crescer num mundo onde o som chega distorcido, partido ou simplesmente não chega, é viver numa realidade que poucos compreendem. Esta é a minha história — uma jornada de aceitação, superação e conexão com algo maior do que eu.
O Mundo Silencioso da Infância
Tinha 5 anos. Era 1980.
Lembro-me daquela sala enorme no infantário, com paredes que pareciam maiores do que o mundo que eu conhecia.
O som ao meu redor era abafado, como se eu estivesse debaixo de água. Não conseguia distinguir vozes, nem perceber o que diziam. Tudo parecia distante, como se eu estivesse sozinha num espaço cheio de gente.
À minha frente, estava um cavalete, da minha altura, com uma folha presa por molas pretas. O pincel na minha mão era grande, com uma ponta quadrada, e as tintas, pequenas, tinham cores vibrantes.
A professora falava, explicava o que tínhamos de fazer, mas as palavras não chegavam até mim. Via apenas os lábios dela a mexerem-se, o dedo a apontar para o papel.
Sentia-me perdida. “O que é que ela quer que eu faça?“, perguntava-me, sem resposta.
Olhei para o papel branco. Tão vazio quanto eu me sentia naquele momento.
Olhei pela janela, à minha direita. Lá fora, havia uma parede branca, no pátio. Uma cor sóbria, fria, que parecia refletir o que se passava dentro de mim.
Os outros miúdos estavam concentrados. Não riam, não falavam uns com os outros. Estavam completamente mergulhados nas suas pinturas, como se o mundo inteiro fosse aquele pedaço de papel.
Eu olhava para eles e sentia-me… diferente. Não conseguia perceber o que devia fazer, o que era esperado de mim. E essa diferença começou a pesar. Senti-me frustrada, irritada, como se algo dentro de mim estivesse preso, sufocado.
Peguei no pincel e comecei a pintar. Não sabia o que estava a fazer. Só círculos. Tortuosos. Imperfeitos. Sem rumo. Sem sentido.
Só me lembro de uma cor: azul. Talvez porque o azul refletisse o vazio que eu sentia. Ou talvez porque o azul fosse a única coisa que eu conseguia agarrar naquele momento.
A professora percebeu. Aproximou-se de mim. Disse algumas palavras. Umas consegui entender, outras não. Mas eu sabia que algo não estava certo. Não era como os outros.
Passado algum tempo, os meus pais descobriram: eu tinha surdez severa nos dois ouvidos. E, de repente, tudo fez sentido.
Aquele mundo abafado, a confusão, a frustração… era porque eu não ouvia como os outros. Era porque eu vivia num mundo onde o som chegava partido, distorcido, ou simplesmente não chegava.
A Arte como Forma de Expressão
Ainda assim, algo em mim parecia encontrar formas de expressão.
Talvez fosse a veia artística que herdei do meu avô materno, algo que estava lá, silencioso, mas presente.
Não era sobre pintar ou criar obras de arte. Era sobre a sensibilidade para observar o mundo, para captar detalhes que outros talvez não vissem.
Uma capacidade que, mesmo sem perceber, eu carregava comigo.
Aos 8 anos, em 1983, colocaram-me os meus primeiros aparelhos auditivos.
Lembro-me de sentir o mundo físico a abrir-se um pouco mais.
Mas, enquanto isso, a minha intuição e sensibilidade continuavam a chamar por mim. Sentia presenças, como se alguém estivesse ao meu lado, mesmo quando estava sozinha. E, aos poucos, fui aprendendo a ouvir essas vozes interiores também. Não com os ouvidos, mas com a alma. Percebi que essa conexão não era algo separado de mim.
Fazia parte de quem eu sou, assim como a minha surdez ou a minha visão limitada. Era apenas mais uma forma de me conectar com o mundo, mas de uma maneira que ia além do físico.
O Digital: Onde Encontrei a Minha Voz
Hoje, olho para trás e vejo tudo o que construí.
Sou designer de Comunicação Visual e Web, e já estudei música.
Em 2019, passei a usar um implante coclear no ouvido esquerdo e uma prótese auditiva no direito. Foi nesse momento que me tornei bi-modal, vivendo com surdez profunda. Antes disso, enquanto bi-aparelhada, vivia com surdez severa, mas a progressão natural da minha condição levou-me a este novo capítulo.
E, mesmo com as minhas limitações auditivas e visuais, aprendi a encontrar a minha voz no mundo, especialmente no digital, onde as barreiras são menores.
Mas também aprendi a aceitar a minha voz interior, aquela que vem da minha sensibilidade natural.
Não foi a arte que me salvou, porque nunca procurei refúgio nela. Mas a criatividade e a capacidade de adaptação sempre estiveram comigo, como uma extensão de quem eu sou.
Assim como essa sensibilidade. Ambas fazem parte de mim e ajudam-me a expressar o que não consigo dizer com palavras.
A vida nunca foi fácil. Desde cedo, senti revolta, tristeza, inveja, rejeição. Sentia que o mundo não tinha espaço para mim, que eu era invisível. Mas, com o tempo, percebi que a minha diferença era também a minha força.
Sou cíclica, multipotencial, e continuo a lutar todos os dias para ser melhor do que era ontem. Não, porque quero provar algo aos outros, mas porque quero honrar tudo o que vivi.
Afinal, cada cicatriz conta uma história, e a minha é feita de superação — e de conexão com algo maior do que eu.
A Jornada de Cura e Crescimento
Hoje, ainda continuo o meu processo de cura. Porque a cura não é um destino, mas uma jornada contínua. Trabalho para melhorar as cinco fases do desenvolvimento pessoal: mental, espiritual, emocional, física e social.
Sei que não há perfeição, mas há progresso.
No mental, procuro expandir os meus horizontes, aprender, desafiar as minhas crenças.
No espiritual, aprofundo a minha conexão com o divino, com a energia que nos une a todos.
No emocional, aprendo a lidar com as minhas dores, as minhas sombras, e a acolher quem eu sou.
No físico, cuido do meu corpo, respeitando os seus limites e celebrando as suas conquistas.
E, no social, esforço-me para construir laços genuínos, para me conectar com os outros de forma autêntica.
Cada dia é uma oportunidade de crescer, de curar-me, de tornar-me mais inteira.
A coragem começa por aparecer e permitir-nos ser vistos
Brené Brown